O casario longilíneo, na brancura da cal, espreguiçando-se à procura do sul, encabeçado pela casa do lavrador de grossas paredes de xisto, ao longo da rua empedrada, marginado do lado de lá pelo casarão do forno, onde às quintas-feiras o odor do pão, amassado pelas mãos trigueiras da Luzia, me induzia a uma sensação de prazer incontido; o meu avô sentado na pequena cadeira de tábua junto aos degraus da casa, ali passando as tardes a namorar o céu para além das bossas de camelo dos cerros, parados à espera do movimento que as searas onduladas pelo vento de outono lhes conferia, na expectativa de que o fim do dia lhe trouxesse a bênção da lua cheia – tudo imagens que eu ia absorvendo na memória de menino, num feliz compromisso, à medida que a minha idade ia subindo em centímetros. Mais abaixo, a horta, prenhe de macieiras e romãzeiras, alfaces, couves repolho, de raízes apertadas pela terra generosa, beleza em cor refletida na água encanada que corria do tanque, alimentado pela nascente pródiga. A ribeira, sustentada por paredes que mãos suadas construíram juntando o xisto sobre o xisto, dava eco ao zumbido vibrante de fios elétricos que rãs estáticas faziam. Quando o avô nos deixou, ficaram para trás estes anos cruciais da minha vida de menino.

 

Mas as raízes eram fortes e aqui ficaram à espera da replantação, o que veio a acontecer muitas décadas depois. E após esta doce experiência, e já com o pé na segunda metade do século e o coração cheio de recordações do avô e da quinta, lá nos deixámos ir nas voltas da vida. Numa ilha do Atlântico, de águas quentes e a exalar iodo aprendi as primeiras letras, juntamente com a experiência pluridimensional do planeta. Depois foi o Alto Alentejo, junto à raia, onde constatei a beleza da palavra na boca e na caneta de José Régio, meu professor de alguns anos. Passada quase mais uma década e foi o abrir dos braços e do coração à cidade onde, numa “república” de gente nova, cheia de esperança, e com os sentidos já no futuro, convivi com o Zeca, com o Adriano e tantos outros. Aí comecei a compreender, de forma clara, que algo mais importante se desenhava para além do fado e da balada. Era como se os alicerces de uma nova sociedade estivessem ali, bem dentro de nós, fogo da vida, como semente em lameiro… Uma década depois, continuando a peregrinação, foi a rendição aos acordes de cor da longínqua ilha, em forma de crocodilo, quase nos antípodas, com apontamentos paisagísticos que ainda hoje guardo e onde aprendi com os seus habitantes que era possível um homem ler nas estrelas e aceitar a nossa pequenez perante a indiferença das forças naturais. Portugal, por razões familiares, primeiro, e profissionais depois, foi percorrido a saltos de canguru, com armas e bagagens do centro ao norte, do norte ao sul e novamente ao centro, uns anos aqui, outros ali, até que a vida me empurrou para bem longe, para os lados do Sol Nascente, onde acabaria por viver década e meia de fantásticas experiências que me redimensionarem a personalidade e me forneceram as cambiantes orientadoras necessárias à definição das linhas de rumo que iriam dar consistência à minha vida futura. Nesta diáspora de quase meio século a quinta, em mãos estranhas de arrendatários, ia-se degradando, com uma existência embalsamada, ao ponto de se parecer mais com uma qualquer Pompeia do que com a silhueta que me cativou em criança e ao longo da vida exerceu sobre mim o mesmo efeito de magnetismo que a beleza perfeita da flor da esteva.

“Já me têm referido de forma sentida que, lá de cima, o avô observa com orgulho o seu único neto varão que, fechando o longo círculo do tempo que passou, veio pôr o pé na pegada por ele deixada nesta calçada.”

Contudo, serena e firme, com as suas quatro paredes de xisto, continuando a desafiar os tempos e os ventos soprados do lado do mar, foi-se tornando a velha casa do avô, na sua lonjura, um poderoso símbolo de permanência. Finalmente, como estava escrito, depois de tanta volta, o corpo não resistiu ao apelo e aqui voltei, para esta terra que me dá uma sensação de beatitude que escapa na cidade. Era, assim, imperioso voltar, replantar-me nesta terra mística e pagã ao mesmo tempo. E o agroturismo aconteceu com a naturalidade da semente que procura a terra onde se aconchegar e dar fruto. Já me têm referido de forma sentida que, lá de cima, o avô observa com orgulho o seu único neto varão que, fechando o longo círculo do tempo que passou, veio pôr o pé na pegada por ele deixada nesta calçada. Não é por acaso que me chamo Luís Mendonça Freitas por ser o nome dele. E como disse um dia noutro lugar, o agroturismo pode ser muita coisa. Boa quase sempre. Mas também pode ser, para além do bem-estar, um exercício de memória e gratidão. Como é o caso desta Quinta do Chocalhinho, comprada em 1942 por meu avô, velho ferroviário e pescador que a desenvolveu de forma notável enquanto fisicamente existiu. Hoje a Quinta do Chocalhinho, profundamente remodelada por mim, seu neto homónimo, em total respeito pelo seu chão, está preparada para receber hóspedes como o velho proprietário sempre o fez com os amigos: calorosa e fraternalmente.

 

Antes

 

A Quinta do Chocalhinho – que também se poderia chamar Quinta da Memória ou Quinta da Casa Grande – tutelada pela presença sentida do avô LMF, é hoje um espaço de cinco gerações que pretende, a quem a visita, contar a maneira de ser de uma família, mas também alguns dos segredos da região onde se insere. Obviamente tendo como testemunhas, ao longo dos seus montes e caminhos, incontáveis pássaros, javalis, coelhos bravos, árvores e flores. Para já não falar das manhãs límpidas e das noites estreladas prenhes de luar e silêncio. Bem, e que nos trouxe de experiências, de afetos, esta nova vida? De experiências são as que não escapam a este tipo de atividade de turismo familiar: logo de manhã, à mesa, longas e animadas conversas com gentes de todas as latitudes, misturadas com a alegria e o entusiasmo próprios de convívio de amigos de longa data, seguidas tantas vezes de passeios conjuntos pelos trilhos da quinta, saudáveis exercícios de partilha dos cheiros e tonalidades desta natureza pródiga que fascina quem vem de longe e amarra quem quer partir. Depois, no decorrer do dia, vão acontecendo tranquilos encontros com os diversos utentes da quinta, em que, entre outras coisas, como o seja o património material e imaterial da região, se fala da flora endémica, património raro, cuja viabilidade a longo prazo deve ser assegurada, bem como da fauna e dos vários biótopos da região que se podem observar na quinta. Ao fim do dia é a vez de descer à várzea para tratar dos burros, dos patos, das galinhas, das ovelhas e das cabras anãs, hora esperada com ansiedade pelos mais pequenos que nos acompanham, fascinados por verem tantos animais fora de gaiolas ou espaços apertados.

 

Depois de uma pequena aprendizagem do que se vê e apanha na horta, o passeio nos burritos pelos trilhos da quinta é a cereja no cimo do bolo para estes pequeninos às vezes mais interessados do que os próprios pais na descoberta das coisas extraordinárias deste Alentejo para eles ainda tão cheio de mistérios. Também para mim toda esta experiência se vai desdobrando e multiplicando em afetos gerados pelos temas pacificadores das conversas, ao mesmo tempo que, partilhando experiências, vou aprendendo e tomando consciência da riqueza desta região e da essência do seu futuro turístico. Foi o coração e a memória que me trouxeram. Mas hoje acresce o consolo de estar a contribuir para que toda esta beleza de que estou rodeado seja divulgada por todos os que, através de nós, a vão conhecendo.
in REVISTA FO-MAGAZINE • N.º 7 JUL-NOV 2012